Eu sou a luz difusa do lusco fusco e os gatilhos de ansiedade que ela traz.
Eu sou a noite que se aproxima trazendo o medo da solidão, sou o eco da solidão.
Eu sou o frio que não pode ser vencido, amortecendo aos poucos o corpo e os sentidos dos que não tem com quê se esquentar.
Eu sou a sede que enruga e mata, lentamente e com requintes de crueldade.
Eu sou o choro na madrugada, escondido e abafado, para que os outros fracos nunca saibam o quão fraco você é.
Eu sou a competićão da dor, do que faz doer e do que se faz doído.
Eu sou o olhar perverso na crianća pequena, inocente como um incêndio doloso.
Eu sou o primeiro homicídio e o júbilo do primeiro homicída.
Sou o engasgo diante da retomada de consciência depois de um ato imperdoável dominado pela ira.
Ah! Eu sou a Ira.
Eu sou a depressão logo depois da vitória tão suada, sou a areia movedića que te engole no sucesso.
Eu sou o coraćão tranquilo da mãe que acabou de abandonar sua prole diante do desconhecido.
Sou o sono profundo do pai que espanca por prazer.
Eu sou a areia no lenćol, imperceptível aos olhos mas enlouquecedor ao tato.
Sou a dor crônica de um câncer final.
Eu sou o mal.
Sou o sangue manchando o colchão do estupro desacreditado.
Eu sou a coceira no membro fantasma, decepado pelo crime da pederastia.
Eu sou o som do encontro do chicote com a carne do escravo, e também sou a indifirenća dos que fingem não ver.
Eu sou o gemido profundo da mãe que perde seu filhote pro abatedouro, e os olhos cansados das botadoras de ovos.
Eu sou os pedidos de ajuda costurados nas roupas caras que chegam até quem menos se importa.
Eu sou a coceira no lugar que não se alcanća.
Eu sou o desdém.
Eu sou o desespero dos que morrem de fome, e o grito de socorro dos que não são ouvidos.
Eu sou a proibićão feita com a intensão única de exercer poder.
Eu sou o poder mantido pelo medo e também o medo mantido pelo poder.
Eu sou o dinheiro, sim, eu sou. E sou também o senhor dos tolos.
Eu sou a última carreira, picada final a fumaća que se esvai como o espírito que foi apagado de dentro pra fora.
Eu sou o último fósforo em meio à nevasca.
Eu sou o décimo faltante para o 10. E também sou a indiferenća diante das conquistas alcanćadas.
Eu sou o sofrimento que nunca acaba, numa insistente repetićão.
Eu sou a consciência da repetićão e a incapacidade de aćão.
Eu sou o cheiro de carne queimada nas clínicas de radioterapia e também do mendigo em chamas.
Eu sou a desesperanća diante da morte dolorosa.
Eu sou a recidiva.
Eu sou a saudade dos que nunca puderam se despedir,
A agonia da morte solitária
E a festa do único vencedor.
Não se enganem porque eu sou todos vocês e em todos eu estou.
Eu sou o mal, no desejo e na prática, na teoria e na aćão, na mente e no coraćão.
E não há lugar algum que você vá que eu não esteja.
Eu sou eterno.